quinta-feira, 3 de março de 2011

Docente e Profissionalização: o ensino de filosofia no ensino médio

ENOQUIO SOUSA NASCIMENTO*

Professor Orientador: Prof.ª Drª.Hilda Mª Freire Montysuma



       Resumo: Este artigo busca realizar de forma sucinta uma reflexão acerca da docência e da profissionalidade. Pois historicamente, a profissão docente, ou seja, a assunção de uma certa profissionalidade – uma vez que a docência é assumida como “profissão” genérica e não como ofício, já que no contexto social sempre foi considerada como uma semiprofissão – caracterizava-se pelo estabelecimento de alguns traços em que predominava o conhecimento objetivo, o conhecimento das disciplinas à imagem e semelhança de outras profissões.saber, ou seja, possuir um certo conhecimento formal, era assumir a capacidade de ensiná-lo. E em outro momento e último, abordaremos sobre o ensino de filosofia, sobre o contexto que envolve o ensino de filosofia para jovens, na escola, que é complexo já que há tantos possíveis objetivos educacionais que podemos atribuir à filosofia, tantos fins filosóficos e as possíveis formas de alcançá-los. Também há a heterogeneidade de realidades da escola a ser levada em conta, e, com limites explícitos – embora já previsto em lei –, torna-se mais um fator problematizável.



Palavras-chave: Docente, profissionalização e ensino de filosofia.



Introdução



       O presente século representa um acontecimento mítico para todos os que nasceram na segunda metade do século anterior, e por isso parece necessário que toda instituição educativa – desde a que se encarrega das etapas iniciais até a universidade, bem como toda instituição responsável pela formação inicial e permanente, como instituições “que tem a função de educar” – e a profissão docente – entendida como algo mais que a soma dos professores – devem mudar radicalmente, tornando-se algo realmente diferente, apropriado a enormes mudanças que abalaram o século XX. Em suma, a profissão docente deve abandonar a concepção predominante do século XIX de mera transmissão do conhecimento acadêmico, de onde de fato provém, e que se tornou inteiramente obsoleta para a educação dos futuros cidadãos em uma sociedade democrática: plural, participativa, solidária, integradora...

Docência e Profissionalização
       Embora a condição de funcionário – seja no setor privado – e as estruturas de dependência do sistema assalariado no setor privado marquem de modo determinante as relações de trabalho, e estas não tenham tido variações significativas no último quarto de século, o mesmo não acontece com o âmbito estritamente profissional, em que as mudanças se produzem mais rapidamente. Nos últimos tempos, questionaram-se muitos aspectos da educação que, até o momento, eram consideradas intocáveis. Vimos como se questionou o conhecimento nocional e imutável das ciências como substrato da educação e houve uma abertura para outras concepções em que a rápida obsolescência e a incerteza têm um papel importante. Mas o mais importante é que amplos setores demandaram que a educação se aproximasse mais dos aspectos éticos, coletivos, comunicativos, comportamentais, emocionais..., todos eles necessário para se alcançar uma educação democrática dos futuros cidadãos.
       Começou-se a valorizar a importância do sujeito, de sua participação e, portanto, também a relevância que a bagagem sociocultural (por exemplo, a comunicação, o trabalho em grupo, a tolerância, a elaboração conjunta de projetos, a tomada de decisões democráticas etc.) assume na educação. É claro que convém estar alerta para impedir que se trate de uma redefinição dos sistemas econômicos e de regulação do mercado para produzir elementos que podem supor uma autonomia educacional vigiada, autorizada, ou uma colegialidade artificial. Ou, de qualquer modo, para evitar que se façam concessões em autonomia (decisões políticas educativas, currículos contextualizados...) e para continuar fortalecendo uma verdadeira participação coletiva profissional.
       Essa nova renovação da instituição educativa e esta nova forma de educar requerem uma redefinição importante da profissão docente e que se assumam novas competências profissionais no quadro de um conhecimento pedagógico, científico e cultural revistos. Em outras palavras, a nova era requer um profissional da educação diferente.
       No entanto, não podemos analisar as mudanças da profissão docente sem observar que isso esteve presente durante muitos anos em redor do debate sobre a profissionalização docente, e como diz Labaree:
       Há uma série de razões para crer que o caminho para a profissionalização dos docentes encontra-se cheio de crateras e areias movediças: os problemas próprios que surgem ao tentar promover os critérios profissionais dentro de uma profissão tão massificada, a possibilidade de desvalorização das habilitações como conseqüência do aumento dos requisitos educativos, a herança niveladora dos sindicatos dos professores, a posição histórica da docência como forma de trabalho própria de mulheres, a resistência que oferecem os pais, os cidadãos e os políticos à reivindicação do controle profissional das escolas, o fato de a docência ter demorado se incorporar a um campo infestado de trabalhos profissionalizados, a prévia profissionalização dos administradores das escolas e o excessivo poder da burocracia administrativa, a prolongada tradição de realizar reformas educacionais por meios burocráticos (...) e a diversidades de entorno em que se dá a formação dos professores. (1999: 20)
       Aqui, ante tantas dificuldades para assumir uma profissionalização docente, cabe perguntar: Quais são as competências necessárias para que o professor assuma essa profissionalização na instituição educacional e tenha uma repercussão educativa e social de mudança e de transformação?
       Historicamente, a profissão docente, ou seja, a assunção de certa profissionalidade – uma vez que a docência é assumida como “profissão” genérica e não como ofício, já que no contexto social sempre foi considerada como uma semiprofissão – caracterizava-se pelo estabelecimento de alguns traços em que predominava o conhecimento objetivo, o conhecimento das disciplinas à imagem e semelhança de outras profissões. Saber, ou seja, possuir certo conhecimento formal era assumir a capacidade de ensiná-lo. À parte essas características de um conhecimento formal estabelecido de antemão, para ser um profissional é preciso ter autonomia, ou seja, poder tomar decisões sobre os problemas profissionais da prática. Atualmente, para a educação do futuro, essas características históricas são consideras insuficientes, embora não se discuta que sejam necessárias.
       O professor de filosofia: o ensino de filosofia no ensino médio como experiência bastante possível que aquele que se dedicar a dar aulas de filosofia para jovens no Brasil, hoje, sentirá a necessidade de pensar seriamente no que isso significa antes de sentir-se em condições de decidir o que fazer em suas aulas e como fazê-lo. O contexto que envolve o ensino de filosofia para jovens, na escola, é complexo já que há tantos possíveis objetivos educacionais que podemos atribuir à filosofia, tantos fins filosóficos e as possíveis formas de alcançá-los. Também há a heterogeneidade de realidades da escola a ser levada em conta, com limites explícitos – embora já previsto em lei –, torna-se mais um fator problematizável. Talvez aquela prévia reflexão do professor se imponha de forma tão vigorosa justamente pela diversidade de enfoques que podemos ter para esse ensino, a diversidade de maneiras de entendê-lo.
       É possível que esse professor pense: para que defenda a filosofia na escola? O que há de específico na filosofia que a faz necessária no currículo dos jovens? Qual filosofia ensinar? Como fazê-lo? Damos aulas de filosofia ou de filosofar? O que é a filosofia? O que é o filosofar? É possível essa separação das duas coisas? Ora, assim aquele professor terá começado a pensar filosoficamente o ensino de filosofia e só isso já pode ser um bom começo.
       Não poderíamos dar conta, num artigo, de problematizar todos os pontos abertos que surgem quando pensamos o ensino de filosofia para jovens, vamos, portanto, dar atenção para algumas dessas questões que se colocam propedeuticamente a ele.
Filosofia ou filosofar no ensino médio?
       Para começar propomos que nos dediquemos à clássica questão que se levanta sobre a cisão entre filosofia e filosofar. É clássico citar Kant quando se pretende defender que não é possível ensinar a filosofia, mas sim a filosofar. Para Kant, a filosofia é um saber que está sempre incompleto, pois está sempre em movimento, sempre aberto, sempre sendo feito e se revendo e por isso não pode ser capturado e ensinado: “(...) nunca se realizou uma obra filosófica que fosse duradoura em todas as suas partes. Por isso não se pode em absoluto aprender filosofia, porque ela ainda não existe” (Kant, 1983, p. 407). O ato de filosofar, por sua vez, seria composto de passos conscientes na análise e crítica dos sistemas filosóficos, exercitando o talento da razão, investigando seus princípios em tentativas filosóficas já existentes. O autor estaria afirmando a autonomia da razão pura, na interpretação corrente de suas colocações. Lemos em Kant, na conhecida Crítica da razão pura: “Só é possível aprender a filosofar, ou seja, exercitar o talento da razão, fazendo-a seguir seus princípios universais em certas tentativas filosóficas já existentes, mas sempre reservando à razão o direito de investigar aqueles princípios até mesmo em suas fontes, confirmando-os ou rejeitando-os”. Pensamos que não podemos dizer que para Kant é possível separar o filosofar da filosofia já que o proposto exercício da razão deve ser feito sobre os sistemas filosóficos. O professor Guillermo Obiols, depois de analisar a passagem citada, conclui: (...) aprender a filosofar só pode ser feito estabelecendo um diálogo crítico com a filosofia. Do que resulta que se aprende a filosofar aprendendo filosofia de um modo crítico, quer dizer, que o desenvolvimento dos talentos filosóficos de cada um se realiza pondo-os à prova na atividade de compreender e criticar com a maior seriedade a filosofia do passado ou do presente (...). Kant não é um formalista que preconiza que se deve aprender um método no vazio ou uma forma sem conteúdo; tampouco se segue que Kant tivesse avalizado a idéia de que é necessário lançar-se a filosofar sem mais nem muito menos a idéia de que os estudantes deveriam ser impulsionados a ‘pensar por si mesmos’, sem necessidade de se esforçar na compreensão crítica da filosofia, de seus conceitos, de seus problemas, de suas teorias etc. (Obiols, 2002, p. 77). Daquela interpretação de que Kant estaria afirmando a “autonomia da razão filosofante” se contrapõe geralmente o exemplo de Hegel ao afirmar que quando se conhece o conteúdo da filosofia não apenas se está aprendendo a filosofar mas que já se está filosofando propriamente. Daí que para ele não é possível ensinar filosofia sem ensinar a filosofar, assim como não é possível ensinar a filosofar sem ensinar filosofia. Gallo & Kohan posicionam-se de forma dialética com relação ao problema: “(...) a própria prática da filosofia leva consigo o seu produto e não é possível fazer filosofia sem filosofar, nem filosofar sem fazer filosofia (...)”.
       O professor de filosofia: o ensino de filosofia no ensino médio como experiência... é um sistema acabado nem o filosofar apenas a investigação dos princípios universais propostos pelos filósofos” (Gallo & Kohan, 2000, p. 184). Com o que concordamos. Não se trata de consumir as palavras dos filósofos como se consome uma fórmula matemática. Deve-se ler filosofia como se lê poesia, revivendo-a: ressuscitando-a, encarnando-a, emocionando-se com ela, reinventando-a.
       Entendemos, então, que não é possível desunir filosofia de filosofar pois os dois são uma mesma coisa. O filosofar é uma disciplina no pensamento que ao ser operada vai produzindo filosofia e a filosofia é a própria matéria que gera o filosofar. São indissociáveis. A matéria filosofia separada do ato de filosofar é matéria morta, recheio de livro de estante. Para ser filosofia ela tem que ser reativada, reoperada, assim reaparecendo a cada vez. Como a malha tricotada que só aparece se houver o ato do tricotar.
       O leigo desavisado não vê o tricotar na malha e não saberia refazer seu caminho. A tricoteira sabe cada passo dos pontos e ao ver o tricô pode ver o tricotar, pode, a partir do tricô, reativar o tricotar que vai produzir tricô e assim sucessivamente. O movimento da razão a que chamamos filosofar se dá por intermédio de conceitos filosóficos e estes só são criados e recriados por meio do filosofar. Não há como ficar com uma coisa e dispensar a outra já que não são duas coisas e sim uma só. Não há o dilema filosofia ou filosofar. Filosofia é filosofar e filosofar é filosofia.
       Essa idéia pode levar-nos a uma outra, esta sobre o ensino de filosofia. Se, como dissemos, a filosofia é matéria e ato interdependentes entre si, que estão em movimento espiral de impulso mútuo e contínuo; se filosofar é produção de filosofia e filosofia é filosofar, então o que deve ser o ensino de filosofia? O ensino de filosofia deve ser produção de filosofia, deve ser filosofar. Isso pode parecer fácil de se entender, porém não antes de se perguntar: Ora, mas para que ensinar filosofia para os jovens na escola? Qual o papel formativo da filosofia? Se a colocamos dentro da escola, é para que cumpra uma determinada função na formação da subjetividade do jovem estudante. E que função é essa? A filosofia é uma invenção da nossa civilização. Ela surge concomitantemente à Civilização Ocidental. Sempre que ensinamos sobre sua história atribuímos sua origem à passagem do pensamento mítico ao pensamento racional, nos primórdios, com os pré-socráticos, depois com Sócrates, Platão e assim sucessivamente. A filosofia, essa mesma que queremos ensinar na escola hoje, sempre esteve presente na nossa história.
       Apesar disso, não achamos exagerado acusar o modo de viver de nossa civilização de antifilosófico. Hoje, acumulamos complicados processos que emperram a exploração das possibilidades de sermos humanos muito mais do que desenvolvemos uma prática reflexiva na criação de nossas subjetividades dentro de nossa cultura. Não praticamos filosofia no cotidiano. A postura do senso comum com relação ao conhecimento é mais de crença na ideologia da ciência, das tradições, da lógica da indústria que de construção autônoma e crítica de si e do mundo. Pensamos que o justo seria educar, hoje, para que o aluno seja outro e não um mesmo, um mesmo que qualquer modelo, ou seja, que ele seja ele. O justo é educar para oferecer condições para o educando conquistar pensamento autônomo.
       O pensamento que conhece suas razões, que escolhe seus critérios, que é responsável, consciente de seus procedimentos e conseqüências e aberto a se corrigir. Pensamento criativo, capaz de rir de si mesmo, buscador de compreensão, sempre atento ao seu tamanho justo. Esse pensamento não se permite obediência à regra inquestionável do consumo automático, infundado e sem fim. Esse pensamento não se permite tornar-se ação baseada nos critérios da indústria. Ele não se permite o preconceito, não se permite coisificar. É, de alguma forma, uma ferramenta de libertar-se, libertação no sentido nietzscheano, libertar-se das opiniões, das obrigações, da preguiça e do medo. Afirmamos que o ensino de filosofia como experiência filosófica pode desenvolver esse pensamento.
Conclusão

Tudo isso torna inquestionável uma nova forma de ver a instituição educativa, as novas funções do professor, uma nova cultura profissional e uma mudança nos posicionamentos de todos os que trabalham na educação e, é claro, uma maior participação social do decente.

REFERÊNCIA


GALLO, S.; KOHAN, W. Filosofia no ensino médio. Petrópolis: Vozes, 2000.
KANT, I. Crítica da razão pura. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção “Os Pensadores”).
LABAREE, D. F. “Poder, conocimiento y racionalización de la enseñanza: Genealogía del movimiento por la profesionalidad docente”, in PÉREZ, A.; BARQUÍN, J. & ANGULO, F. Desarrollo profesional del docente. Política, investigación y práctica. Madrid, Akal, 1999.
OBIOLS G. Uma introdução ao ensino da filosofia. Ijuí: Editora da UNIJUÍ, 2002.

* Enoquio Nascimento, é licenciando em filosofia pela Universidade Estadual de Roraima, e pós graduando em docência do ensino superior, pela Faculdade Roraimense de ensino superior, (FARES).



Nenhum comentário:

Postar um comentário